28 janeiro, 2009

AVÓs ...


Podia não estar sempre na flor da idade.
Mas foi flor que soube desabrochar a cada nova estação - e só murchou depois de mais de 102 primaveras ...
Pequena - tipo 'mignon', como gostava de falar – tinha temperamento forte
.
Até completar 60 deixou os cabelos naturais – para se tornarem uma cabeleira alva, cheia, algo ´fashion´ até ...

Vieram os netos.
Coincidências à parte, resolveu que era hora de remoçar, ter mais disposição ...
Primeira mudança, visível: os cabelos, que voltaram a ter cor.
O rosto se iluminou e os netos surtiram melhor efeito que qualquer tratamento cosmético disponível na época.
Lia, escrevia, discutia – com e sobre tudo. E todos. Do seu jeito.
Costurava, bordava, moldava (com miolo de pão, massinha de modelar, papel ... com qualquer coisa que lhe caísse nas mãos e pudesse ser amassada, dobrada, cortada).
Transformava.
Fazia crochê - e me fez sua discípula.
Corrigia os ´erres´, exigindo que fossem proferidos de forma forte, causando uma coceirinha no palato ...
Perfeccionismo quase inútil para quem mora no litoral ... santistas preferem os ´esses´, bem arrastados ... e a fala é mais mansa, como uma onda que vai e vem, meio indolente ...
O dicionário tinha sempre destaque - e, de tão consultado, quase se desfazia por entre os dedos...
Em rituais próprios, ela mesma cortava o cabelo e fazia suas unhas, pintando-as sempre com aquele Rosa Antigo, da Colorama.
Usava sabonete Myrurgia, creme Pond´s e Leite de Colonia – e dizia não existir melhores. Penso que aquela pele não deixava dúvidas das convicções dessa “espanhola de Rio Claro”...
Azeite de Oliva, só Carbonell. Nunca faltava. À mesa. Ou nos cabelos ... (sim, era um emoliente natural e, mensalmente, aplicado naquela cabeleira ...)
O pudim de leite feito por ela tinha mais furos do que a Lua – e também não era de queijo ...
Nunca entendeu a neta (tão rebelde e respondona!) que estudava e trabalhava – e saía, todos os dias ... Faculdade de Arquitetura? Se lhe perguntavam, dizia que, assim como o filho, ela era engenheira ...
Acreditava que mulheres deveriam ser mais caseiras - e tentar fazer bons casamentos.
Depois do almoço tinha a sagrada ´siesta´.
Os vasos, de pedra e muito pesados, eram preenchidos com mini-rosas e todo tipo de flor que lhe trouxessem. Tinha “dedos verdes”, capazes de fazer brotar beleza em tudo.
Sua varanda, enorme, era seu jardim.
Ao cultivá-lo, sempre usava seu chapéu e mangas compridas – pessoas ´queimadas´ não eram bonitas ... tinham aparência de camponeses (?). Isso me faz imaginar que talvez sua alma não fosse assim tão alva quanto a sua cútis ...
Aquela cobertura, única, era seu mundo – particular, inteiro, intocado.
Foi sua primeira moradora e gostava de relembrar a inauguração, em grande estilo ...
Desenhou cada detalhe da decoração, acompanhou a execução dos móveis, era uma minimalista eclética ...
Ativa, sempre manteve aquele espaço – imenso e impecavelmente organizado.
Às visitas, um Porto - Lacrima Christi. Em taças delicadas, sempre brilhantes e cuidadosamente expostas naquela cristaleira art déco ...
E biscoitos Champagne ...
Nos últimos anos a vida ficou mais difícil, é verdade.
Não podia mais ficar sozinha.
Ligava o gás; dormia. E esquecia.
Acho que voltava à Espanha . Sonhava. Delirava em castellano ...
Era novamente aquela criança.
Nada mais importava – apenas seus sonhos, coloridos e importados, com "sotáquio".
E neles tudo era perfeito.
Lá estavam seus pais, a “abuelita”, seus irmãos, a aldeia ...
E tudo voltou a ser como ... Domingos!


OBS: Pequena crônica inspirada em minha avó materna, Rosa - e que não está completa, pois sinto vontade de ´burilá-la´ a cada instante, conforme as lembranças vão se tornando mais claras ...

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